quarta-feira, 24 de novembro de 2010

*Felicidade Clandestina*

Pois logo a mim, tão cheia de garras e sonhos, coubera arrancar de seu coração a flecha farpada.



De chofre explicava-se para que eu nascera com mão dura, e para que eu nascera sem nojo da dor.


Para que te servem essas unhas longas?


Para te arranhar de morte e para arrancar os teus espinhos mortais, responde o lobo do homem.


Para que te serve essa cruel boca de fome?


Para te morder e para soprar a fim de que eu não te doa demais, meu amor, já que tenho que te doer,
eu sou o lobo inevitável pois a vida me foi dada.


Para que te servem essas mãos que ardem e prendem?


Para ficarmos de mãos dadas, pois preciso tanto, tanto, tanto - uivaram os lobos e olharam intimidados as próprias garras antes de se aconchegarem um no outro para amar e dormir.



(Trecho do conto 'Os desastres de Sofia', in "Felicidade Clandestina)


Clarice Lispector

domingo, 21 de novembro de 2010

*Versos da Morte*

A morte nos faz cair em seu alçapão,



É uma mão que nos agarra


E nunca mais nos solta.


A morte para todos faz capa escura,


E faz da terra uma toalha;


Sem distinção, ela nos serve,


Põe os segredos a descoberto,


A morte libera o escravo,


A morte submete rei e papa


E paga a cada um seu salário,


E devolve ao pobre o que ele perde


e toma do rico o que ele abocanha.





 Hélinand de Froidmont,


em ‘Os Versos da Morte’

sábado, 13 de novembro de 2010

A vOz dO siLênCio

Pior do que a voz que cala,



é um silêncio que fala.


Simples, rápido! E quanta força!




Imediatamente me veio à cabeça situações


em que o silêncio me disse verdades terríveis,


pois você sabe, o silêncio não é dado a amenidades.


Um telefone mudo. Um e-mail que não chega.


Um encontro onde nenhum dos dois abre a boca.




Silêncios que falam sobre desinteresse,


esquecimento, recusas.


Quantas coisas são ditas na quietude,


depois de uma discussão.


O perdão não vem, nem um beijo,


nem uma gargalhada


para acabar com o clima de tensão.




Só ele permanece imutável,


o silêncio, a ante-sala do fim.




É mil vezes preferível uma voz que diga coisas


que a gente não quer ouvir,


pois ao menos as palavras que são ditas


indicam uma tentativa de entendimento.


Cordas vocais em funcionamento


articulam argumentos,


expõem suas queixas, jogam limpo.


Já o silêncio arquiteta planos


que não são compartilhados.


Quando nada é dito, nada fica combinado.




Quantas vezes, numa discussão histérica,


ouvimos um dos dois gritar:


"Diz alguma coisa, mas não fica


aí parado me olhando!"




É o silêncio de um, mandando más notícias


para o desespero do outro.




É claro que há muitas situações


em que o silêncio é bem-vindo.


Para um cara que trabalha


com uma britadeira na rua,


o silêncio é um bálsamo.


Para a professora de uma creche,


o silêncio é um presente.


Para os seguranças de um show de rock,


o silêncio é um sonho.




Mesmo no amor,


quando a relação é sólida e madura,


o silêncio a dois não incomoda,


pois é o silêncio da paz.


O único silêncio que perturba,


é aquele que fala.




E fala alto.




É quando ninguém bate à nossa porta,


não há emails na caixa de entrada


não há recados na secretária eletrônica


e mesmo assim, você entende a mensagem


Martha Medeiros