Sou primo de Brás Cubas. Igual a ele, também personagem de um romance,
só que bem canhestro.
Fui inventado por um escritor de segunda linha.
Mesmo assim, sigo os passos de meu primo famoso
e deixo as minhas memórias póstumas.
Escolhi copiá-lo já que nunca tive coragem de ser cândido enquanto respirei.
Embora um homem comum, sempre temi censuras.
Por este simples motivo decidi escrever só depois que abandonei a vida
Amei e odiei como todos, mas, acorrentado ao cotidiano,
não escapei de ser empurrado pelo ofício de sobreviver.
Eu acreditei no imperativo de findar a jornada como modelo de sucesso.
Assim, sonhei e trabalhei sem perceber a brevidade da vida.
Daqui, noto que me deixei encabrestar por escrúpulos sociais
e domesticar por demandas religiosas.
Pobre de mim, pacificado,
a minha existência se esvaiu em uma hemorragia lenta.
Agora morto, medito sobre o meu ativismo.
Restaram-me estes olhos fatigados, fixos e cadavéricos.
Vejo a estearina bruxuleante que acenderam
para a última vigília e desperto:
estas olheiras nasceram de minha constante responsabilidade.
Desde a adolescência lutei por ideais que me cobravam forças onipotentes.
Desprezei a sede pelo silêncio. Arfo pelo inefável. Tenho fome de beleza.
Onde estou, os espelhos são nítidos.
Brilha uma claridade cristalina por todos os lados.
Lembro-me dos mínimos detalhes e, como não tenho pressa,
determino que vou encontrar-me.
Não posso avinagrar o que restou na alma.
Preciso integrar-me e descansar o coração.
Espalho as circunstâncias vividas como peças de um tabuleiro,
para tentar dar algum sentido ao que experimentei.
Estabeleço que o tenho que deixará de ser um jugo;
o não devo, uma obrigação; o não posso, um tabu.
Quero ter a minha vida leve como uma pipa.
Que o meu porvir seja intrépido como uma jangada,
feita com os galhos de um carvalho manso.
Só agora estou seguro.
Não preciso provar-me a uma divindade incontentável.
Nenhuma guilhotina desceu sobre meu pescoço imaterial.
Já não me sinto obrigado a defender um nome
- não se traz qualquer notabilidade para esta dimensão.
Sou anônimo entre anônimos.
Quando precisar escalar a próxima serra,
não me considerarei um pusilânime.
Prometo galgar todas as ladeiras sem fanfarrice.
Sóbrio, pretendo encarar o porvir com mais cuidado.
Aprendi, tardiamente, que a minha jornada foi precária,
as escolhas, provisórias e as certezas, imprecisas.
- Oh, nunca imaginei que admitiria a minha debilidade!
Há pouco, afirmava que só incompetentes e medíocres comentam os seus malogros.
Porém, contemplo o meu corpo inerte, desfigurado, sem viço. Juro:
- De agora em diante, marcharei um passo de cada vez, um pé na frente do outro
– o mal de cada dia me bastará.
Por que não inspirei a beleza inútil que me rodeava?
No estado de deslembrado, deixo de ser prático,
dou de ombros para os lógicos e rio dos úteis. Estranho.
Sinto-me satisfeito com as imagens imprecisas que o coração guardou.
Retalhos de momentos esparsos tornaram-se a minha pouca fonte de alegria.
Prometo: não serei leviano no próximo abraço,
distraído na próxima conversa e jamais reticente diante do próximo afeto.
Acabei-me. Não quero lápide.
Sei que vou amarelar nos álbuns de fotografia.
Inconformado, grito, esbravejo e esmurro o chão:
– Quero viver, quero viver, quero viver.
Mas, dos confins da eternidade, ressoa:
“Tarde demais”.
Resíduos de Uma Memória Póstuma
Ricardo Gondim
Adorei o texto!
ResponderExcluirBeijão